1-
Saída de emergência
"Deves
é mudar de alma, não de clima. (...) Andares de um lado para o outro não te
ajuda em nada, porque andas sempre na tua própria companhia." Séneca
Sempre
que, antes da descolagem de um amo, se escuta: Preste atenção que a saída de emergência pode estar nas suas costas,
sentimos que se está a falar não das medidas de segurança no caso de um
acidente, mas da existência no geral. Existência individual e da sociedade.
A
Europa embarcou há muitos anos e, em 2013, continuarão a ouvir-se os conselhos
de segurança: Preste atenção que a saída de emergência pode estar nas suas
costas. E há quem aponte outras saídas.
Numa variação de
célebres paradoxos, poderemos dizer que um continente ou um homem que estejam
equidistantes de duas saídas de emergência, em caso de acidente correm o risco
de morrer, imóveis, na hesitação. E com dezenas de saídas de emergência a igual
distância, um homem ou um continente - além de não se salvarem - ficarão loucos.
2
- Versos
Os
versos de Hölderlin:
"Dificilmente abandona / o seu lugar aquele
que mora perto da origem."
E
o comentário de Heidegger a estes versos:
"De modo inverso, quem facilmente abandona o
lugar comprova que não tem origem e se limita a estar presente como que por
acaso."
3
– Velocidade
A
síntese do homem contemporâneo, do europeu que pode decidir e agir - é a do
Homem com pressa dentro de um elevador.
A
angústia de ter pressa e músculos e energia capazes de acelerar, mas estar
dentro de um recipiente que tem uma velocidade predeterminada e que não altera
a sua velocidade.
A
sensação é a de que entre a sociedade e cada um dos elementos que a constituem
se começa a cimentar uma dessincronização essencial das velocidades. O recipiente
com motor onde nos colocaram nunca tem a velocidade de que precisamos. Mas já
não somos nós que fazemos juízos sobre o recipiente, e o elevador que nos
julga. E o mecanismo do ascensor que diz ao Homem com pressa dentro de um elevador:
estas com pressa a mais, acalma-te.
Estamos sempre ou
demasiado rápidos ou demasiado lentos. A nossa velocidade torna-se culpada. A
sociedade parece exigir sempre, em qualquer circunstância, uma outra
velocidade. És culpado porque não acertaste na velocidade.
4
- Fundamentalismos
Gosto particularmente
do que diz uma personagem de Hans Christian Andersen: "Pediram-lhe para
rezar, mas ele só se lembrava da tabuada" .
Dois tipos de
fundamentalistas:
1. O fundamentalista da lógica pura: pediram-me bondade, mas eu só me
lembrava da tabuada; pediram-me sabedoria, mas eu só me lembrava da tabuada,
etc.
2. O fundamentalista
religioso: Pediram-lhe a tabuada, mas ele só se lembrava de rezar.
Há muito que a Europa
se instalou na tabuada. Por cima do mapa do Continente poderíamos escrever
simbolicamente
2x3=6
ou
a tabuada inteira, mas cometeríamos um
sacrilégio se escrevêssemos uma oração,
por exemplo, o Pai nosso que estais no Céu, Santificado seja o Vosso nome.
O sacrilégio mudou de
objecto.
Na Europa, em 2013, o
discurso religioso que conteste uma adição ou uma multiplicação será apedrejado.
O
cineasta Herzog lembra que, num dos seus filmes rodado em África, elementos da
tribo massai não quiseram entrar num posto médico móvel porque este estava
elevado em relação ao chão. "Por razões misteriosas, não se atrevem a
subir os degraus. Tentam entrar, hesitam e recuam. Só no final é que alguns
massais conseguem ultrapassar esse obstáculo invisível e subir os três degraus
que conduzem ao seu interior."
A
Europa, de uma forma geral, esta assim. Não sobe os degraus; tem medo das
alturas, da pequena altitude que esses pequenos degraus inauguram. Com os pés
no chão ou em queda (sem chão por baixo): eis como se sente segura a Europa.
"O
rapaz não ousa olhar-se no escuro, /mas sabe bem que deve afogar-se no sol / e
habituar-se aos olhares do céu, para se fazer um homem." Cesare Pavese
5-
5 não é 5 não é 5 não é 5
A objectividade pura
tem uma potência violenta. 5 é 5 é 5, eis o indiscutível. Dizer que 6 não é
maior do que 5, em 2013, na Europa, seria o mesmo que dizer - na Europa
medieval - que Deus não existia.
Quando alguém diz: isto
é objectivo, o que está na verdade a dizer é que isto não tem discussão, isto é
verdade, tu não tens nenhum contra-argumento contra isto. Alguém que se opõe ao
que é objectivo só pode ter, assim, uma cabeça débil. Quando se diz isto é
objectivo termina-se a conversa, o outro não pode contestar.
Quando se diz isto é subjectivo,
afirma-se apenas que isto é um ponto de vista; permite-se, pois, que o outro dê
um passo em frente, contra argumente.
Numa entrevista a um
jornal francês, Godard disse uma vez esta frase terrível: "A
objectividade? É cinco minutos para Hitler e cinco minutos para os
Judeus."
6
- Moral da máquina - ou o oitavo pecado
"E as crianças que poderiam ter mudado tudo/
jogam entre pedras e minas. / E não querem mudar nada." Yehuda Amijai
A moral europeia é, em
parte, a moral da máquina. É bom aquilo que funciona. É bom, não apenas em
termos de eficácia, mas em termos morais.
A noção de pecado
socializou-se e entrou na esfera da tecnologia. Alguém que não saiba calcular
ou que não domine a última versão do Windows comete um pecado. O pecado maior é
a ineficácia. Alguém que não funcione bem torna-se um pecador.
Os pecados capitais são
agora oito: gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça vaidade e
incompetência. O incompetente não entrará no reino da Terra.
7-Salvação
A discussão é sempre
esta: prefere ser operado pelo médico competente ou pelo médico de 'bom
coração'? Se escolher a pessoa que mais o ama para o operar cometerá
provavelmente um erro. A salvação já não vem com a entrada do padre na casa do
doente, mas com a do médico - e esta transição radical do século XX, analisada
por muitos, ainda está em movimento. A salvação que classicamente teve uma
abordagem religiosa ou moral tem desde há muito, na Europa, um entendimento
clínico.
"Aqui, onde as ruínas querem voltar a ser /
uma casa (...)" Yehuda Amijai
8
- Coragem e bondade
A bondade salva cada
vez menos, e isso assusta. No mundo de paisagem técnica em que os elementos
naturais estão escondidos - quase já não há montanha, nem terra - cada vez
mais, salva quem sabe onde ligar ou desligar a electricidade; aquele que sabe
mexer nos comandos da casa das máquinas.
E nesse aspecto seria
interessante fazer a análise do homem europeu que salva outro em 2012. Se, em
séculos passados, a coragem, acima do resto, seria uma das qualidades
essenciais de quem salva, hoje tal qualidade é quase dispensável. Que poderá
fazer o homem mais corajoso do mundo diante de alguém que corre perigo no meio
de uma cidade moderna? A coragem perdeu eficácia - os seus efeitos eram bem
mais evidentes quando o que estava diante de si para vencer era uma força natural
- animal, água, fogo, outros homens, etc.
Hoje a coragem tem,
primeiro, de tirar um curso de especialização técnica. Se não o fizer será
coragem, sim, sempre, mas inconsequente. Diante de um conjunto de pessoas fechadas num elevador
parado por avaria, o homem mais corajoso do mundo irá telefonar à assistência
técnica - eis o sem-saída em que nos colocámos.
9-
Valores morais - e o que está no meio
Se pensarmos nos
diversos valores morais e éticos – bem, bondade, lealdade, altruísmo,
honestidade, solidariedade, liberdade, verdade, justiça, sabedoria, coragem,
etc. verificaremos que, se no meio deles estiver o funcionamento de uma
máquina, estes valores tornam-se pouco consequentes. É esta a anulação moral
por parte das máquinas. A tecnologia, no seu conjunto, funciona como uma
máquina de terraplenagem moral.
Estes valores morais
clássicos, há que insistir, foram pensados na relação de um homem com outro
homem ou conjunto de homens, uma relação imediata. O que temos em 2013 nas
cidades europeias é um outro mundo. São raras as relações imediatas, directas,
corpo a corpo e entre homens. No meio, mesmo que muitas vezes não nos
apercebamos disso, estão máquinas. A lealdade entre dois homens só se poderá
manifestar na cidade europeia do século XXI se, pelo menos num deles, existir
um conjunto de habilitações técnicas mínimas.
Não te posso salvar
porque não sei mexer na máquina - eis a frase que, em 2013, será muitas vezes
escutada.
"Há muitos metros entre um animal que voa /
E a escada que desço para me sentar no chão" Daniel Faria
10
- Palavras más
Sem nos apercebermos,
de uma forma subtil, o vocabulário que utilizamos de forma comum vai instalando
este novo mundo. Peguemos num exemplo: a palavra funcionário. Esta palavra tem
uma violência contida de que não nos apercebemos. Funcionário é aquele que
exerce um conjunto de funções - e função sempre foi uma parte que está contida
em algo mais amplo e importante. Reduzir uma pessoa a um conjunto de funções é
violentá-la.
Pensemos, por exemplo,
na inócua pergunta: ele funciona bem? De facto, podemos perguntar se o João, a
Maria ou o elevador funcionam bem. E quando podemos fazer a mesma pergunta acerca
de um homem ou de uma máquina é porque algo, de facto, ia atrás, se
desarranjou.
E é também por isso que
muitas pessoas, aqui e ali, começam a ter avarias.
11-
A apatia
O que me parece muito
claro é que a máquina é o ser apático por excelência. (A apatia, esse modo de
uma coisa se colocar sempre à mesma distancia de todas as outras coisas, de não
ter julgamentos estéticos, éticos, etc.)
Uma fotocopiadora tira
fotocópias de um documento neutro e a seguir de uma sentença de morte, com a
mesma maquinal indiferença – à mesma velocidade e qualidade de impressão. Nunca
para o seu movimento por questões morais, só por avaria. A avaria, aliás, é
muitas vezes a origem de uma tragédia, mas cada vez mais, também, uma das
últimas vias de salvação. (A cada dia, a cada ano, a frase - felizmente,
avariou - ou a estranha e herética frase - Graças a Deus, avariou-se tornarão menos
absurdas.)
12
- As perguntas humanas
Não podemos fazer
perguntas sobre julgamentos estéticos ou filosóficos a um animal ou a uma
máquina e é também por isso que as artes, a cultura e a filosofia, apesar de
tudo - apesar de tudo - são importantes. Também não podemos fazer perguntas
éticas ou sobre ‘estados de espírito' senão a humanos: não perguntamos a uma
máquina fotográfica se ela ficou entusiasmada quando fotografou aquela paisagem.
Seria interessante
pensar que continuamos humanos precisamente porque há ainda perguntas que se
fazem às pessoas que não podem ser feitas aos animais ou às máquinas. Por
exemplo, as simples perguntas: gostas? Era bonito?
Outro
exemplo de uma pergunta naturalmente humana, a de Brodski: "Mas porque está ausente da Constituição a
palavra 'chuva'?"
13
- O que aí vem - pés, olhos
"Bem-aventurado o que pressentiu / quando a
manhã começou: / não vai ser diferente da noite." Adélia Prado
Podemos ter os pés num
terreno feio e os olhos virados para algo belo, ou podemos, situação inversa:
ter os pés num terreno belo e os olhos fixados em algo feio. Na primeira
situação, teremos a sensação de que estamos num sítio belo. E na segunda
situação teremos a sensação de estar num sítio feio. O que vemos, à frente,
torna-se sempre o mais relevante.
Se estamos com os pés
num sítio feio e os olhos fixos num sítio feio, mas temos uma bela imagem na
cabeça, estamos num sítio belo - eis o que dirá, em contraponto a tudo isto, o
bom e perigoso, o perigoso e bom velho utópico.
"Depois encontrei meu pai, que me fez festa
/ e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria (...)" Adélia
Prado
2 comentários:
da singularidade à sabedoria.
gostei muito e vou roubar para o meu blog.
Ai, não sei se deixo....
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