domingo, 19 de dezembro de 2010

Um anjo banha-se num rio negro e nas suas margens as flores murcham.
O seu mais simples toque provoca enormes e furiosas ondas onde supostamente as águas são calmas.
O anjo ergue com as suas mãos uma quantidade indefinida dessa água dum negrume impróprio para consumo e atira-a violentamente sobre o seu rosto tatuado com retratos com esgares de dor. Água suja, repleta de despojos de vontades humanas, serve para o anjo despertar da dormência em que vivia. A dormência de aspirar ao inaspirável.
Abatem-se sobre ele esses resquícios nauseabundos das vontades humanas que ali foram lançadas para desaguar em mares de grandiosidades e despertam o que jamais poderia ser despertado num querubim celestial: a vontade de ser humano.
A vontade de perder as asas e poder caminhar apenas. Sentir que lhe doem os pés por nunca mais chegar onde pretendia.
A vontade de perder a sua beleza idílica e ser substituída por rostos de banalidade.
A vontade de perder a sua aura e poder pecar. Cometer crimes contra quem o criou.
A vontade de ter vontade...
O anjo consegue ver o seu reflexo celestial apesar de todo o lodo contido e remove-o com a sua espada flamejante que era destinada a dilacerar as almas humanas.
O anjo torna-se humano. Torna-se hermafrodita porque acredita na igualdade.
Toca nas flores que haviam murchado com as suas novas mãos e elas perecem finalmente nas suas mãos. Agora sim é um ser humano com a vida alheia a desvanecer-se nas suas mãos.

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