Acordo o meu cadáver que jaz intranquilo a meu lado. Dou-lhe banho, visto-o e preparo-lhe o pequeno almoço. Conduzo-o ao trabalho. Com cordéis nos braços e pernas, consigo que o meu cadáver execute eficazmente o meu trabalho. As pessoas falam com o meu cadáver. Transformo-me em ventriloquo e uma espécie de sons articulados saem dos lábios do meu cadáver. As pessoas parecem ter ficado satisfeitas com estes guturais que jorraram parecendo vir directos do inferno. Há problemas no serviço. A culpa parece ter sido do meu cadáver, mas veio a descobrir-se que não era. Uma espécie de fúria homicida ameaça formar-se no meu cadáver, mas, com a subtileza de um piscar de olho desaparece. Surpreendido o meu cadáver quer questionar-se, mas nenhuma questão é desenhada no cérebro do meu cadáver, parece ter sido varrida qualquer réstia de pensamentos que ainda deambulavam pelo cérebro do meu cadáver.
Está na hora de mais uns comprimidos receitados pelo governo para racionar a loucura no meu cadáver. O vazio instala-se...
O olhar frio e focado num horizonte que não se avista perde toda a vida que sempre teve. Isso agora parece uma mera miragem.
O meu cadáver está calmo. Nenhum pensamento ousa formar-se. A presencia bélica de ansiolíticos e demais psicotrópicos impõe respeito e deixa os pensamentos bem para trás da barreira de pseudo-segurança.
Olho para o meu cadáver e pergunto-me onde estarei eu ali por dentro. Será que há uma réstia do que eu sou naquele monte de carne?
As horas de serviço arrastam-se penosamente. O meu cadáver ganha aspecto maquinal. Executa tarefas como se sempre estivesse programado para isso.
O meu cadáver fuma um cigarro. Um estranho alívio de um tormento aniquilador e não identificado forma-se. Junta-se uma enorme vontade de orquestrar um genocídio. O meu cadáver ganha contornos de um Fuhrer num Reich apocalíptico. Algo poderoso e mau começa a trepar pelo meu cadáver. Uma espécie de ódio contra todos os seres vivos, mas ele acaba assim que mais uns comprimidos invadem impiedosamente o corpo do meu cadáver. Uma paz nervosa substitui tudo o que antes povoava a mente. O meu cadáver olha para mim e eu olho para ele.
A loucura está doseada neste momento mas jamais estará morta. Está anestesiada e, talvez, a hibernar em plena primavera.
A paz traz consigo o vazio e a guerra acarreta um turbilhão de emoções. Foram todas levadas para um campo de concentração e estão a morrer à fome e ao mesmo tempo a servirem de cobaias a novas formas de controlar a loucura.
Quero entrar em rebelião e soltar tudo o de mau e de bom que habita em mim mas não no meu cadáver. Sou contra este apagar total de racionalidade. Mas o estado diz que eu estou desiquilibrado mentalmente. Talvez porque questione e diga o que pense sendo inconveniente ou não.
Vou tentar fugir desta prisão e devolver vida ao meu cadáver que tenho que arrastar comigo a todo o momento para evitar que ele caia nas teias da conformidade. Serei foragido, mas a batalha pelo controlo da mente, da minha mente, começou. Sou eu contra o mundo. Posso não vencer mas irei morrer a tentar.
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