domingo, 12 de junho de 2011

João Tordo e "As 3 vidas" ou o mero constatar que somos um país de grandes escritores.

Quando um livro nas primeiras páginas me esfaqueia brutalmente com isto:
-"...ao contrário da crença habitual, não me parece que os sonhos sejam o espelho dos nossos desejos; cá para mim, acho que os sonhos são o espelho dos nossos horrores, dos nossos piores medos, da vida que poderíamos ter tido se, numa altura ou noutra, não fossemos incomensuravelmente cobardes." Faz prever que me vou apaixonar completamente.
Quando, algumas dezenas de páginas depois, tem esta análise ao livro "1984";
"Com que ideia ficaste?"
"tem um título curioso, 1984 é daqui a poucos anos..."
"Será sempre daqui a poucos anos..."
"Se existe salvação, ela está no proletariado..."
"E o que achas tu disso?"
"Faz lembrar a Bìblia. Que aos pobres de espírito chegará a salvação"
"A comparação teológica é pertinente; afinal. Cristo foi o primeiro lider do proletariado..."
"A obra é uma metáfora... o romance parece ser uma apologia do socialismo, noutras, parece que nos está a revelar a inutilidade do mesmo.... O verdadeiro perigo está na classe média, no pensamento livre. O que gera o pensamento livre? A dúvida. E o que gera a dúvida? O pensamento livre. Duvido de que duvido..." fico completamente rendido.
É o primeiro livro que leio deste "novo" autor português e entra directamente para o top 10 dos melhores livros que alguma vez li.
A escrita de Tordo é corrida, muita descrição usada correctamente sem cair no exagero. Sendo ficção, aborda a complexidade da humanidade de uma maneira muito próxima ao que Sartre fez nos seus romances.
É daqueles livros que não queria que acabasse e que acaba por saber a pouco por isso mesmo.
A literatura, como todas as formas de arte, é subjectiva. A estória de um homem lutando contra os seus fantasmas e tentando conquistar o controlo do seu cérebro e emoções é algo que me fascina porque tenho essa luta diáriamente e, neste livro, as lutas sangrentas que não deixam qualquer marca física entre uma pessoa e a fronteira tão ténue, que por vezes se diluí, entre a sanidade e o o seu antónimo eclode de uma maneira tão violenta que me arrebatou totalmente.
Este romance, vencedor do prémio Saramago em 2009, foi amplamente elogiado pelo próprio assim como Gonçalo M Tavares já o tinha sido. Se fosse possível, pediria uma ovação em pé para esta obra. Está na hora de procurar os restantes dois romances de Tordo e rezar aos deuses literários para que este não seja outro "Cemitério de Pianos", isto é; a única coisa realmente boa escrita por este jovem autor.
O já citado Gonçalo Tavares está um pouco só no trono do melhor escritor português da actualidade para mim. Está a precisar de companhia. Só é preciso para lá chegar manter a qualidade que o próprio mantém em todos os seus romances. O problema com Tordo é que as expectativas com este livro ficaram estupidamente altas. Mas aquele cheirinho a Sartre é um condimento que me faz babar completamente. Romancear Filosofia só está ao alcance de muito poucos e este livro acaba por estar muito próximo no ranking d´"A nausea".
Podem-me chamar de sonhador, o que também não é mentira nenhuma, ou de utópico, idem aspas aspas, mas a nova geração de escritores portugueses faz-me acreditar que o nóbel de Saramago não será um mero caso isolado. Vários estarão a caminho....
Só espero que os próximos galardoados não tenham a indecência de falecer quando o Presidente da Republica estiver de férias...

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